Na baía de Villefranche-sur-Mer, em 21 de junho de 1930, um navio deslizava  lentamente rumo ao horizonte. Saindo da França, seu destino era o Uruguai. A  bordo, passageiros quase anônimos. Rapazes fortes e musculosos que enfrentavam a  travessia para disputar a partida de abertura da primeira Copa do Mundo de  futebol. Um batismo duplo, de certa forma. A maior parte deles jamais tinha se  aventurado pelo mar, e a viagem até Montevidéu iria durar 15 dias. Por sorte, as  condições meteorológicas se anunciavam favoráveis.
A bordo do Conte  Verde, um homem de terno e gravata, cabelos brancos e bigode finamente  talhado ostentava um sorriso discreto. Em sua bagagem, uma estatueta de 30 cm de  altura e 4 kg, representando uma Vitória segurando sobre a cabeça um vaso  octogonal: a Copa do Mundo, um troféu de ouro maciço produzido pelo escultor  francês Abel Lafleur. O homem que cuidava desse precioso tesouro chamava-se  Jules Rimet. Presidente da Federação Internacional de Futebol desde 1921, ele  batalhava, havia quase dez anos, para organizar uma competição aberta às equipes  do mundo inteiro. Seu leitmotiv: aproximar os jogadores dos dois hemisférios, em  um espírito de fraternidade, e fazer do futebol o rei dos esportes  atléticos.
As esperanças que ele depositava nessa primeira Copa do Mundo  eram imensas. A poucas semanas do momento do primeiro confronto, ele rememorava  o quanto tinha sido longa a estrada até o embarque para a América do  Sul.
Nascido em 24 de outubro de 1873 em Theuley-les-Lavoncourt, um  vilarejo de Haute-Saône, na região francesa de Franco-Condado, o pequeno Jules  passou a infância entre a escola, a loja de produtos alimentícios do pai e o  moinho do avô. A agricultura regional sofria então o impacto da guerra  franco-prussiana de 1870. As condições de vida eram difíceis. Em 1885, com 12  anos, ele se juntou aos pais, que haviam partido em busca de uma vida melhor em  Paris. Aluno estudioso, terminou o ensino médio e começou a estudar direito. Uma  carreira jurídica se abria para ele. Mas seria essa sua verdadeira vocação?
Jovem de personalidade forte, firmemente contrário às desigualdades sociais, ele  sentia uma profunda necessidade de se dedicar a uma causa. Tornou-se membro de  um círculo de operários e mais tarde fundou uma revista de tendência  democrata-cristã que militava pelo progresso social.
O futebol? Ele mal  chegou a calçar as chuteiras. Consciente de seus limites atléticos, que faziam  dele um respeitável esportista de fim de semana, Rimet estava convencido de sua  capacidade para administrar um clube esportivo. Mas não um clube qualquer. Uma  agremiação capaz de ultrapassar as barreiras sociais e fornecer às classes  trabalhadoras a oportunidade de se emancipar por meio do esporte. Em março de  1897, ele criou o Red Star Club, um conjunto poliesportivo de convívio aberto e  igualitário.
Considerado na época um esporte violento, o futebol,  praticado por profissionais na Inglaterra, estava longe de despertar o mesmo  entusiasmo na França, onde não existiam mais que 30 clubes. No plano  internacional, a Inglaterra e a Escócia se entregavam a disputas desde 1872. A  Áustria jogou pela primeira vez contra a Hungria em 1902. A França ingressou na  relação das nações futebolísticas contra a Bélgica em 1o de maio de  1904.
Três semanas mais tarde, no dia 21 daquele mês, por iniciativa do  francês Robert Guérin e do holandês Carl Anton Wilhelm Hirschman, foi assinada,  em Paris, a certidão de nascimento da Federação Internacional de Football  Association (Fifa). Seu papel: coordenar as diferentes associações nacionais e  uniformizar as regras do jogo. Sete países aderiram: França, Bélgica, Dinamarca,  Holanda, Espanha, Suécia e Suíça. A Inglaterra, pátria mãe do futebol, só a  integraria um ano mais tarde.
Jules Rimet, vice-presidente do Comitê Francês Interfederal, participou do  primeiro congresso da Fifa realizado em 1914 em Christiania, hoje Oslo, capital  da Noruega. Na ordem do dia: a organização de um campeonato internacional. Por  que não o torneio de futebol dos Jogos Olímpicos, aberto a amadores desde 1908?  A idéia de uma competição internacional reunindo os clubes campeões das  federações nacionais já havia sido apresentada em 1905, mas aparentemente nenhum  país se interessou. Rimet criticou o projeto de 1914 por ser reservado apenas  aos amadores, e logo teve de bater em retirada sob as bombas da Primeira Guerra  Mundial.
Jules Rimet tinha 40 anos, era casado e pai de três filhos  quando foi encaminhado ao 22o regimento territorial de infantaria de Rouen. Foi  desmobilizado em 6 de janeiro de 1919 com a patente de tenente. Retomou  imediatamente suas atividades no âmbito das instâncias federativas. E como  recompensa por sua contribuição para o desenvolvimento da política esportiva do  país foi eleito presidente da Federação Francesa de Football Association (FFFA)  em 11 de abril de 1919.
Nos meses seguintes ao restabelecimento da paz,  Rimet escreveu a Hirschmann, então presidente interino da Fifa. Insistiu na  necessidade de aquela instância supranacional renovar os laços do futebol  mundial, missão altamente diplomática. O contexto político era bem pouco  propício aos encontros internacionais. Se as partidas entre países aliados foram  rapidamente retomadas, parecia inimaginável confrontar as equipes dos antigos  inimigos.
Jules Rimet destacou-se, então, por suas qualidades de  mediador, que lhe valeram ser eleito presidente da Fifa em 1o de março de 1921.  Em 1923, o jornalista Maurice Pefferkorn escreveria, sobre os talentos  diplomáticos de Rimet: “Ele tem o espírito político que lhe sustenta o senso de  governo. Ele tem o gosto do favor popular e o respeito da opinião das massas”.
Desde então, Rimet tinha apenas um sonho: criar a primeira Copa do Mundo de  futebol. Ele estava convencido de que essa competição mundial aproximaria os  povos e suscitaria um interesse excepcional. Os Jogos Olímpicos organizados em  Paris em 1924 reforçaram sua convicção. Entre as 24 equipes participantes do  torneio de futebol, a maestria exibida pelos uruguaios tinha despertado o  entusiasmo popular.
A final Suíça-Uruguai reuniu dezenas de milhares de  espectadores. Ainda no primeiro tempo, o público foi conquistado pelo estilo de  jogo envolvente dos uruguaios. Esse pequeno país, com uma população apaixonada  por futebol, era a terra prometida buscada por Jules Rimet. Aquela que faria do  futebol a primeira religião planetária.
O destino deu uma ajuda. No ano  seguinte, Rimet encontrou, em Genebra, Enrique Buero, embaixador do Uruguai em  Bruxelas. Entre os temas discutidos naquela conversa estavam a louca epopéia da  equipe do Uruguai nos Jogos Olímpicos de 1924, louvações ao futebol-espetáculo e  perspectivas para o futuro. Conquistado pela eloqüência do francês, Buero  seduziu-se pela ideia de organizar a primeira Copa do Mundo de futebol em seu  país. O presidente da Fifa escreveria mais tarde em suas memórias: “A Copa do  Mundo nasceu naquele encontro – que eu chamaria tranquilamente de  providencial”.
Restava submeter o projeto aos membros da Federação  Internacional. Desafio perigoso. O risco de um fracasso financeiro alimentava o  ceticismo. Com o objetivo de apresentar um projeto estruturado e convincente,  Jules Rimet nomeou uma comissão composta pelo austríaco Meisl, o suíço Bonnet, o  alemão Linnemann, o italiano Ferretti e o francês Henri Delaunay. Foi Delaunay  quem apresentou, em 26 de maio de 1928, em Amsterdã, em nome da França, uma  moção determinando que a FIFA organizasse uma competição aberta a todas as  nações do futebol. Para conquistar os votos dos mais reticentes, foi dada  garantia aos membros de que o país organizador assumiria todos os custos da  viagem e da estada das equipes e dos árbitros. A moção foi aprovada. Hungria,  Itália, Holanda, Espanha, Suécia e Uruguai se candidataram a acolher a primeira  Copa do Mundo.
Evidentemente, foi o Uruguai que alcançou essa meta. Por três razões: a equipe  do Uruguai era bicampeã olímpica (1924 e 1928), seu renome era considerável em  toda a América do Sul e o país se preparava para festejar o centenário de sua  independência. Os dirigentes uruguaios se comprometeram até a construir em  Montevidéu um estádio de 108 mil lugares, o Centenário.
No entanto,  apesar das garantias financeiras, a maioria das associações europeias rejeitou o  convite. A travessia do Atlântico ainda parecia, para muitos, uma aventura. Além  disso, como o profissionalismo ainda não era a regra em todos os países, era  preciso encontrar jogadores que aceitassem deixar o trabalho por um período de  oito semanas. Era o caso da França. “Peregrino apaixonado”, como se definia,  Rimet partiu para tentar obter o consentimento dos jogadores, a autorização de  seus empregadores e dos dirigentes de clubes. “Assim”, disse ele, “consegui  montar uma equipe que, aliás, teve uma presença bastante razoável em  Montevidéu.”
No final, quatro nações européias (França, Romênia, Bélgica,  Iugoslávia) e nove americanas (Estados Unidos, México, Brasil, Peru, Paraguai,  Chile, Bolívia, Uruguai e Argentina) participaram da competição.
Era sem  dúvida em tudo isso que Jules Rimet pensava em 21 de junho de 1930, no convés do  Conte Verde. A travessia até a América do Sul ocorreu sob uma atmosfera alegre e  divertida. Os franceses confraternizaram com os jogadores romenos e belgas. À  noite, lembravam canções de Maurice Chevalier. No convés, os jogadores  improvisavam corridas sobre as mãos. Em um perímetro reduzido, trabalhavam a  técnica de controle da bola. Para desenvolver sua condição física, alinhavam  cadeiras no convés e saltavam sobre elas com os pés juntos. Um meio excelente  para esculpir os abdominais.
Os jornais da época relatam que uma multidão entusiasmada aclamou as equipes  quando chegaram a Montevidéu, em 5 de julho. A seleção da França estava alojada  em um complexo luxuoso, o Rowing Club. Em 13 de julho, os franceses abriram a  competição contra o México no estádio de Pocitos – ainda não terminado, o imenso  estádio do Centenário seria inaugurado cinco dias mais tarde. A França venceu o  México por 4 gols a 1, e Lucien Laurent foi o autor do primeiro gol da história  da Copa do Mundo. Vitória sem continuidade: os franceses perderam as duas outras  partidas classificatórias contra a Argentina e o Chile.
Em 30 de julho de  1930, dia da final Uruguai-Argentina, os 80 mil torcedores uruguaios mal  respiravam. A Celeste – como chamavam sua equipe – vencia por 3 a 2 pouco antes  de soar o apito final, mas não estava a salvo de um contra-ataque argentino.  Poucos minutos depois,
o Centenario transbordava de felicidade: Castro  acabava de fazer o quarto gol, que esmagava definitivamente as esperanças  argentinas. Jamais Jules Rimet havia conhecido “uma tal tempestade de  entusiasmo, de emoção liberada”.
Logo depois do final da partida, foi  hasteada a bandeira nacional. O clamor que vinha das arquibancadas era  indescritível. O presidente da Fifa entregou a Copa do Mundo a Nazzazi, capitão  da equipe uruguaia. Naquele momento, não se sabia qual dos dois homens estava  mais feliz.
Jules Rimet havia vencido sua aposta: fazer dessa competição  um formidável espetáculo popular de alcance universal. Restava-lhe um último  desafio: converter o futebol francês ao profissionalismo. Isso seria feito em  janeiro de 1932, quando foi adotado o estatuto do jogador profissional. Segundo  ele, era o momento de acabar com práticas ambíguas – um bom número de clubes  amadores remunerava então os jogadores profissionais: “Diante das práticas  clandestinas, devíamos reagir com rapidez e dar nome aos bois. Ao fazer isso,  cumpriríamos um dever de honestidade em relação a nós mesmos”. Rimet estava  certo de que o amor pela camisa valia todo o ouro do mundo. Outros tempos,  outros costumes. (Eric Pincas para História Viva).






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