segunda-feira, 4 de abril de 2011

Como uma degustação foi capaz de mudar o mapa da vitivinicultura mundial?

Reprodução da pintura do mestre flamengo, Peter Paul Rubens, representando Paris e as três deusas, que tentam seduzi-lo para ficar com a maçã dourada. Segundo a mitologia, foi a partir da escolha de Paris que teve início a Guerra de Troia
Para quem gosta de mitologia, o Julgamento de Paris representa o começo da Guerra de Troia. Diz a lenda que Paris, príncipe de Troia, teve a incumbência de escolher entre Hera, Atenas e Afrodite, qual era a deusa mais bela - que, assim, receberia a "maçã dourada" (dita maçã da discórdia). Cada uma delas usou de suas artimanhas para convencer o príncipe, que acabou por escolher Afrodite depois de ela lhe prometer o amor da mulher mais bela da terra, Helena de Esparta, esposa do rei Menelau. Assim começaria a narrativa da mais famosa guerra do mundo.
"Steven (Spurrier) certamente não quis causar uma guerra entre Estados Unidos e França. Ele só queria introduzir os vinhos californianos no país, que eram pouco conhecidos pelos entendidos", afirma George M. Taber, único jornalista presente no evento que viria a ser conhecido como "Julgamento de Paris". Mas foi a partir de um brevíssimo artigo escrito por esse "Homero" moderno e publicado na prestigiada norte-americana revista Time, na segunda- feira, 7 de junho de 1976, que se desencadeou uma das maiores revoluções da vitivinicultura mundial, com a quebra do paradigma em torno do sagrado terroir francês e de que somente ele era capaz de produzir vinhos de excelência.

Antes do Julgamento, o mundo do vinho estava dividido entre a França - que produzia os santos néctares consagrados universalmente - e o resto do planeta, que tentava copiar os franceses de alguma forma. E, segundo os próprios franceses e grande parte da crítica, sem sucesso. Assim, esse evento, de resultado totalmente inesperado, fez com que a inabalável crença da superioridade francesa ruísse e abrisse caminho para o que temos hoje, ou seja, vinhos de excelente qualidade produzidos em quase todos os terroirs do globo, vinhos que podem até competir em pé de igualdade com os ícones da França. Se não fosse pelo Julgamento, os vinhos do Novo Mundo ainda seriam vistos como de segunda linha.

Uma vitória improvável
A ideia de contrapor franceses e norte-americanos em degustação foi de Patricia Gallagher, então sócia de Spurrier - na época era apenas dono de uma loja de vinhos em Paris e de uma escola para cursos sobre esta bebida. Eles então queriam aproveitar como mote a celebração dos 200 anos da Independência dos Estados Unidos. Para preparar o evento, foram à Califórnia provar os vinhos pessoalmente. Muitos dos vitivinicultores não quiseram recebê-los. Vários ficaram aborrecidos com a "infeliz" ideia de "humilhar" os norte-americanos justamente no ano de seu bicentenário. Ou seja, nem eles acreditavam que seus vinhos poderiam fazer frente aos franceses.

"Planejei a degustação para chamar a atenção para a qualidade do vinho californiano. Teria ficado feliz com um segundo e quarto lugares, não esperava duas primeiras colocações! É importante deixar claro que minha ideia original não incluía uma degustação às cegas comparativa. O evento só tomou esse formato depois de eu perceber que apenas uma pessoa - Aubert de Villaine, que era casado com uma californiana - já havia provado os vinhos da região, e que o resto dos jurados veria esses vinhos de forma errada, como vindos de uma região ao norte do México. Então, a degustação às cegas foi o mais apropriado.

Jurados

Pierre Bréjoux- inspetor geral das AOC (Appellation d'Origine Contrôlée) francesas, que controla a produção dos principais vinhos do país.

Michel Dovaz- professor da Académie du Vin.

Claude Dubois-Millot-diretor de vendas do GaultMillau, guia de restaurantes, vinhos,hotéis etc na França

Odette Kahn- editora da Revue du Vin de France, a principal revista de vinhos do país 
Raymond Oliver- proprietário e chefe do Le Grand Véfour, um dos mais celebres restaurantes franceses, datando do século XVIII.
Pierre Tari- proprietário do Château Giscours e secretário geral da Associação dos Grands Crus Classés.
Christian Vannequé- sommelier do La Tour d'Argent, provavelmente o mais famoso restaurante de Paris.
Aubert de Villaine- co-proprietário do Domaine de La Romanée-Conti.
Jean-Claude Vrinat- proprietário do Taillevent, restaurante três estrelas de Paris.


Uma derrota histórica
Às 3h da tarde daquele fatídico 24 de maio de 1976, nove jurados de renome (ver tabela) se reuniram no Hotel InterContinental para avaliar Chardonnays e Cabernet Sauvignons. Não imaginavam que a hegemonia do vinho francês estava "ameaçada". Assim que foram servidos os brancos, logo uma pequena confusão se instalou, com alguns degustadores confundindo vinhos californianos com franceses e vice-versa. O resultado: Chateau Montelena em primeiro lugar. Mais do que isso, dos cinco primeiros lugares, três eram norte-americanos. Mais do que isso ainda, nenhum dos jurados deu o primeiro lugar a um francês, todos fi caram entre Montelena (seis dos nove) e Chalone (três).

Aí começava a ruir o trono da França. "Alguns jurados já tinham tido contato com os vinhos da Califórnia, mas a maioria não. Talvez por não estarem familiarizados, eles pensaram que seria como os vinhos da Argélia ou de outros lugares quentes; rude e não muito sofisticado. Eles subestimaram a qualidade das bebidas californianas", atesta Taber, único jornalista a comparecer. "Se o vinho fosse bom, todos pensavam que era francês. Montelena e Stag's Leap também tinham um estilo mais ou menos parecido com os da França", lembra Spurrier.

Para Bo Barret, enólogo chefe de Montelena, filho de Jim Barret, proprietário da vinícola, "o truque era se ocultar, apenas fazer um bom vinho com pureza, sabores pungentes e ótimo equilíbrio. Você precisa lembrar que a ideia da degustação não era dizer quais vinhos eram da Califórnia ou da França. O objetivo era escolher o mais saboroso"
Quando o resultado do flight de brancos foi anunciado por Spurrier, surpresa geral. Assim que os tintos foram servidos, a coisa ficou mais séria. Os comentários mais sisudos. As caras mais fechadas. Depois de dadas as notas, o resultado novamente foi uma vitória californiana, com o Cabernet da Stag's Leap. Porém, dessa vez, a pontuação foi mais apertada e o Stag's Leap só foi o favorito de um dos jurados. Sendo o Haut-Brion o preferido de três. Mayacamas e Ridge Monte Bello também estiveram no topo da lista de dois degustadores (veja tabela de resultados).


"Não esperava que o Julgamento fosse tão importante, mas ele se mostrou um divisor de águas na história do vinho"

O início da revolução

Assim que o evento acabou, alguns se revoltaram. "Se não houvesse um jornalista na degustação seria muito mais fácil para qualquer um negar que aquilo de fato ocorreu, ou que ocorreu de outra maneira.

Tive sorte de ser esse jornalista, de estar em Paris durante o Julgamento. Nunca imaginei que o evento fosse ter o impacto que teve. Não posso alegar que sabia disso antes de a degustação começar ou até mesmo imediatamente após seu final. A força disso tudo só ficou clara depois de algum tempo", conta Taber, hoje aos 68 anos, e que no dia seguinte ao evento completou 34.

Caso o editor da Time em Nova York não tivesse gostado da história, o mundo do vinho permaneceria o mesmo. Contudo, dias depois, lá estava a história curtíssima, sem qualquer destaque, publicada na revista (cuja capa tratava de problemas no exército norte-americano) com o nome de Julgamento de Paris. Poucos seriam capazes de prever o que poucas linhas de texto causariam na vitivinicultura mundial. Subitamente, os vinhos de Montelena desapareceram das prateleiras norte-americanas, mas isso seria apenas a reação inicial de uma revolução que estava prestes a se desenrolar. "Não esperava que o resultado do Julgamento fosse tão importante, mas ele se mostrou um divisor de águas na história do vinho", afirma Spurrier. "Recebi muita reação das pessoas na Europa. Na semana seguinte, estava em Bruxelas para outra pauta, e lembro de muita gente perguntando sobre isso. Aquilo foi fora do comum. Para os editores e para mim, era apenas mais uma história. Ninguém, especialmente eu, percebeu naquele momento que aquilo se tornaria um evento histórico", acrescenta Taber.


Acima, a capa da Time em que saiu o artigo de Taber - de uma única página e sem assinatura do autor. O artigo foi curto e sem grande destaque na edição, porém foi o que bastou para causar uma revolução no mundo do vinho. Ao lado, a garrafa do Cabernet da Stag's Leap, que superou, entre outros, dois Premiers Grand Cru de Bordeaux, como Mouton Rothschild e Haut-Brion, ambos da aclamada safra de 1970
Segundo as palavras do jornalista, no dia anterior à degustação, a França estava no pedestal e enólogos de outras áreas tinham ambições modestas. "No dia seguinte, as coisas começaram a mudar." A repercussão do evento foi tamanha que pôs em xeque o reinado francês quando se tratava de vinhos de alta gama. Naquela época, ninguém duvidava que era possível fazer bons vinhos correntes em países fora da Europa. Contudo, o ideal e a mítica do vinho francês eram tamanhos que poucos se julgavam capazes de desafiá-los quando o assunto eram vinhos de excelência. O "sagrado" terroir francês era inquestionável.


Sem querer, a Califórnia - cuja indústria vinícola na década de 1970 ainda era muito incipiente, apesar dos grandes progressos feitos no Napa Valley, especialmente com a implantação das técnicas e pesquisas da Universidade da Califórnia Davis (UC Davis) - se meteu numa "guerra" que teve um resultado inesperado e marcante.


A partir dessa data, o mundo abriu os olhos para todos os países produtores de vinho como potenciais terroirs para produzir vinhos top. "A degustação encorajou os produtores de todos os cantos a fazer vinhos melhores. Os vinicultores diziam que se a Califórnia conseguia produzir vinhos de qualidade superior aos da França, então eles também poderiam, desde que adotassem procedimentos similares aos dos dois países", garante Taber.

Para Taber, outro benefício direto do Julgamento foi a "melhora impressionante na qualidade dos vinhos mais baratos. Antigamente, os vinhos comuns não eram muito bons". Já Spurrier aponta que "a importância do Julgamento está no fato de essas degustações de 'vinhos desconhecidos contra vinhos famosos' serem totalmente aceitas agora. As degustações mostraram que, para agregar reconhecimento a um produto, ele tem que ir contra os valores de referência".

Campeão do Chardonnay queria ser campeão do Cabernet? Segundo Bo Barret, do Chateau Montelena, ter vencido entre os Chardonnays no Julgamento de Paris não mudou a mentalidade da vinícola, que, na verdade, queria era se tornar referência entre os Cabernet Sauvignons do mundo. "O sucesso de nosso Chardonnay não mudou nossa determinação e nossos planos de fazer um Cabernet Sauvignon de nível mundial. É possível que, dado o sucesso de nosso Cabernet, que é independente do Julgamento de Paris, Montelena talvez fosse um 'Premier Cru' californiano, produzindo somente Cabernets, similar aos Châteaux de Bordeaux. Não foi exclusivamente o Julgamento que nos alçou à posição que estamos hoje. Em 2005, Montelena era muito mais conhecido e respeitado por seus tintos, que dominavam aqui desde 1978, e que significam cerca de 60 a 75% da produção atual. Então, não é de se estranhar que digamos que há uma probabilidade razoável de que olhemos da mesma maneira para o sucesso dos nossos tintos", revela o enólogo norte-americano.

Depois do Julgamento, todas as grandes companhias passaram a olhar para o mundo todo como sendo um grande campo de cultivo


Mundo aberto para o vinho
"A indústria de vinhos norte-americana, mais exatamente a da Califórnia, desenvolveu um estilo próprio. Na época do Julgamento, os norte-americanos estavam tentando 'copiar' o estilo francês, e o fizeram muito bem", afirma Taber. E isso é confirmado com o que teria dito Joe Heitz, proprietário da Heitz Cellars na época quando Spurrier veio selecionar seu vinho: "Meursault Charmes é o vinho favorito da minha esposa, e é o que tento fazer aqui".

Segundo o jornalista, mais tarde, influenciados pelo estilo de vinho que Robert Parker gosta, os vinicultores norte-americanos começaram a produzir vinhos mais ousados. "Não é todo mundo que gosta desse estilo, mas é diferente", diz Taber. Já Spurrier aponta que um dos prejuízos do Julgamento foi exatamente a falta de expressão dos vinhos de alguns produtores. "O sucesso dos vinhos da Califórnia subiu na cabeça dos produtores e fez com que os preços subissem muito, e, na maioria das vezes, eles não valem tudo isso. Esses vinhos e de muitos outros países do Novo Mundo, são feitos para impressionar, ao invés de 'expressar', e essa abordagem é completamente equivocada", lamenta o crítico britânico.

No entanto, assim que a poeira baixou, os franceses começaram a aceitar melhor a redistribuição do mapa mundi dos vinhos e olhar para o que estava sendo feito ao redor do planeta. "Depois de a confusão ter acabado, a nova geração de produtores de vinho foi para a Califórnia para ver o que estava acontecendo, e o resultado disso foi uma certa descrença nos hábitos do passado", anota Spurrier. "O Julgamento abriu os olhos dos produtores europeus. Depois dele, inúmeras vinícolas francesas começaram a enviar gente aos Estados Unidos para ver o que acontecia lá. A consequência mais importante do Julgamento foi o Opus One, joint venture formada pelos Rothschild e Mondavi. Todas as grandes companhias internacionais passaram a olhar para o mundo todo como sendo um grande campo para se plantar", afirma Taber.


O Julgamento enfraqueceu o mito dos vinhos franceses mas, ao mesmo tempo, trouxe mais consumidores para o mundo do vinho


30 anos depois, Spurrier refez a degustação do Julgamento e o Ridge Monte Bello venceu, provando a longevidade dos vinhos do Novo Mundo
Ideal francês está morto?
Ninguém duvida da força que o Julgamento de Paris teve na vitivinicultura mundial. Tanto que, a partir daí, produtores do mundo todo começaram a pôr à prova seus vinhos. Em 2004, por exemplo, Eduardo Chadwick, da Viña Errazuriz, no Chile, resolveu promover a "Degustação de Berlim", em que opôs seis vinhos chilenos com grandes vinhos franceses e italianos. Diante de uma plateia atônita, Chadwick viu dois de seus vinhos vencerem a prova.

Dois anos depois, em 2006, foi a vez de Spurrier repetir a prova que havia feito 30 anos antes. "Refizemos o Julgamento simultaneamente em Londres e no Napa Valley. Os mesmos 10 vinhos tintos foram provados por nove degustadores (Christian Vannequé e Michel Dovaz, dois dos jurados originais de 1976 estavam no Napa e em Londres, respectivamente). E os vinhos da Califórnia ficaram com as cinco primeiras colocações", lembra consultor editorial da revista inglesa Decanter.

Na ocasião, os mesmos tintos, das mesmas safras da prova de 1976 foram degustados e, desta vez, venceu o Ridge Monte Bello 1971. Spurrier fez esta "contraprova" para tentar calar os críticos que o acusavam de comparar "maçãs com laranjas" e garantiam que, em 1976, os vinhos franceses ainda não demonstravam todo o potencial que poderiam e que os californianos não aguentariam a prova do tempo. "Se você comparar vinhos da mesma variedade e das mesma safra, tudo o que está isolando é o terroir e o processo de produção. Portanto, a comparação é totalmente válida", garante o britânico.

Ele, porém, não acredita que os vinhos franceses tenham deixado de ser um referencial de qualidade para o resto do mundo: "A meu ver, a França ainda é referência nos vinhos do Novo Mundo. O ideal dos vinhos franceses ainda está longe de estar morto", afirma. Ponto de vista compartilhado por Taber, que diz: "O vinho francês ainda está entre os melhores do mundo, mas a França não é mais considerada o único local onde se faz excelentes vinhos. A Itália e a Espanha produzem ótimos vinhos. O Novo Mundo está produzindo vinhos marcantes. Isso não acontecia na década de 1970. Lá, era a França que produzia boas bebidas".

E Taber finaliza defendendo o Julgamento mais uma vez: "Acredito que esse evento tenha sido benéfico para todo o mundo do vinho. Ele pode ter enfraquecido o mito dos vinhos franceses e tê-los tirado de seu trono, mas, ao mesmo tempo, trouxe mais consumidores para esse mundo, fato que beneficiou a todos, inclusive os franceses" ( da revista Adega ).

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