quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

As duas faces de um governo

É hora de “arrumar a casa” em Copenhague

Luis Inácio Lula da Silva*

Pouco mais de dois meses após ter vivido em Copenhague uma das maiores alegrias da minha vida, na reunião do Comitê Olímpico Internacional que escolheu o Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, volto à Capital dinamarquesa para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática (COP-15). O evento do COI foi, para o Brasil, o ponto alto de uma campanha vitoriosa. Para a comunidade internacional, a COP-15 é o momento crucial de um longo processo negociador, no qual cada dia de atraso para tomarmos as decisões que a realidade nos impõe representa um dia a mais de prejuízo para o planeta como um todo.

Ainda que possa haver algum debate sobre os critérios usados para avaliar o tamanho desse dano, ninguém mais discute que as perdas acumuladas são significativas e que representam uma ameaça real e imediata para a humanidade. Os padrões de desenvolvimento e de consumo ditados a partir da Revolução Industrial, e disseminados pelo mundo ao longo do século XX, deixaram como herança para o século XXI um planeta em profundo desequilíbrio. Esse desequilíbrio não é apenas ambiental, mas também social e econômico. A tarefa de construir consensos e de buscar novos equilíbrios demandará coragem e desprendimento, virtudes que até o momento, lamentavelmente, não foram a marca nesse debate.

Por esse motivo, considero um passo positivo a confirmação da presença de mais de 100 Chefes de Estado e de Governo para os dias decisivos da conferência. O fato de que vamos conseguir reunir número tão expressivo de líderes mundiais em Copenhague é um bom começo nesse momento de definição. Mas claramente não é o suficiente. Cada um de nós terá de dar sua parcela de contribuição e de sacrifício, sem artimanhas negociadoras que só contribuem para irritar os demais interlocutores e para retardar a busca de soluções.

Ninguém ignora que o processo de desenvolvimento econômico e de degradação ambiental que o mundo testemunhou ao longo das últimas décadas foi profundamente assimétrico, no plano internacional e até mesmo no interior de cada país. Enquanto alguns obtinham e obtêm benefícios de uma exploração pouco racional dos recursos naturais, ostentando padrões de consumo claramente insustentáveis, a grande maioria da população do planeta não viu os frutos dessa prosperidade.

Para piorar as coisas, a repercussão desse processo de degradação tem impacto profundo, e os mais pobres são, em geral, os mais vulneráveis. Chegou a hora de discutir um compartilhamento justo de custos e sacrifícios, e de propor medidas concretas para "arrumar a casa", expressão que usamos no Brasil para situações que exigem uma reorganização séria de tarefas e de prioridades. Há algum tempo a conta está na mesa, cobrando juros altos das futuras gerações. E, infelizmente, as partes envolvidas não chegaram até agora a um acordo sobre a forma de pagá-la. É preciso resolver rapidamente esse problema. Só assim poderemos evitar que o desastre ambiental do século XX se repita e trabalhar para que a brecha de padrões de consumo entre ricos e pobres possa começar finalmente a ser revertida, com a ajuda da tecnologia. Para que isso seja possível, é fundamental trazer para a prática um conceito universalmente consagrado, que é o das responsabilidades comuns, mas diferenciadas. Todos concordam com ele em tese, mas, na hora de discutir sua aplicação prática, sempre surgem as desculpas, as divergências e as táticas protelatórias.

Os países desenvolvidos não podem mais evitar assumir os custos e sacrifícios que lhes correspondem nessa tarefa. Os países em desenvolvimento também devem ser parte da solução, e o Brasil, como um deles, assumiu compromissos sérios e relevantes para apresentar na mesa de negociações da COP-15: uma proposta arrojada de redução de emissões de CO2 até 2020, entre 36,1% e 38,9%, bem como a redução em 80% do desmatamento da Amazônia no mesmo período. Só o impacto da diminuição do desmatamento em matéria de emissões é superior ao que muitos países desenvolvidos estão oferecendo até o momento em Copenhague, o que indica que continua a haver desequilíbrios que precisam ser resolvidos na negociação. A favor de nossas propostas, contamos com o resultado de esforços como o da redução do desmatamento na Amazônia, que só este ano foi de 45,7% em relação a 2008.

O Brasil tem ainda experiências reconhecidamente bem-sucedidas em matéria de energia renovável, responsável pela impressionante cifra de 47% de energia limpa em toda a matriz energética do País, enquanto na média global a participação de fontes renováveis na matriz gira em torno de 13%. A produção em larga escala de energia hidrelétrica e o desenvolvimento de tecnologias como a da produção e do uso do etanol a partir da cana-de-açúcar e a da produção de carros flex-fuel, que utilizam tanto a gasolina como o etanol, por exemplo, foram testadas com êxito e estão plenamente incorporadas à realidade brasileira. Elas vêm dando, há décadas, contribuição significativa na luta contra o aquecimento global. Somente o uso do etanol como combustível, no Brasil, a partir dos anos 70, evitou emissões da ordem de 800 milhões de toneladas de CO2.

Para chegarmos a resultados satisfatórios em Copenhague, todos precisamos contribuir, e temos que evitar tentações conhecidas, como a da polarização Norte-Sul, ou ainda a perder tempo na busca de culpados. A história das negociações multilaterais demonstra que elas são pouco úteis, para dizer o mínimo. Nossas energias devem concentrar-se em identificar parceiros realmente interessados em encontrar soluções comuns, sem preconceitos ou posições egoístas, ditadas por grupos de interesse poderosos em cada país.

Percebo, nas conversas que venho mantendo há meses e no acompanhamento da cobertura jornalística da primeira semana da COP-15, uma crescente aspiração global no sentido de que os líderes reunidos em Copenhague tenham a coragem de agir. Temos de estar à altura desse desafio. Como líder político e ex-líder sindical, sei que qualquer ação concreta é precedida de muita conversa, de muita negociação, e com esse espírito volto à Dinamarca. Falarei tanto quanto for necessário, com todos os que estejam comprometidos com soluções construtivas no combate à mudança do clima. O papel do G20 diante da crise financeira internacional representa, para mim, um exemplo estimulante de diálogo multilateral que produziu resultados e evitou o pior. Vamos precisar desse exemplo como inspiração, e também de recursos significativos como os que envolveram o resgate do sistema financeiro, para fazer o mesmo em relação ao aquecimento global.

O momento de agir é agora. Não podemos desperdiçar de novo a chance oferecida por Copenhague. O custo de qualquer novo atraso apenas aumentará ainda mais um legado que já é trágico, e que precisa ser enfrentado sem demora.

*Luiz Inácio Lula da Silva é Presidente do Brasil
 
Duas caras para a Amazônia
 
Por Rodolpho Mafei
 
Lula, como era esperado, prorrogou mais uma vez a entrada em vigor do decreto 6.514, que finalmente regulamentava, depois de 44 anos, as punições previstas para crimes ambientais pelo Código Florestal Brasileiro. O decreto, que obrigava a averbação definitiva de reservas legais e áreas de proteção permanente em propriedades rurais e estabelecia o reconhecimento por parte dos fazendeiros de seus passivos ambientais, só vai valer para daqui a dois anos.

Mas o presidente, além do adiamento do decreto, também deu um presentão de Natal para a turma da motosserra: uma anistia para qualquer pessoa que desmatou ilegalmente até hoje, num valor de R$ 10 bilhões que deixarão de ir para os cofres públicos.

A coisa vai funcionar assim. Basta o fazendeiro dizer onde deveria estar sua reserva legal, reconhecer que desmatou além da conta e prometer que vai recuperá-lo num prazo de três décadas e – abracadabra – todas as multas em que ele incorreu por não cumprir as leis que protegem o ambiente no Brasil desaparecem. Quem desmatou leva o perdão à vista, enquanto pode pagar o que deve ao país a prazo.

Lula concedeu tudo o que a bancada da motosserra exigiu e ainda passou o recado de que, no Brasil, o crime compensa. Para as florestas brasileiras, no entanto – fundamentais para ajudar a reverter as mudanças climáticas – o novo decreto ambiental que o presidente assina não traz um mísero mimo sequer. Enquanto em Copenhague, semana que vem, o governo pedirá ajuda financeira para conservar as florestas, por aqui ele perdoa a dívida.

Lula prefere atender a interesses econômicos de alguns em vez de pensar no bem comum de todos os brasileiros: a garantia de um ambiente saudável para esta e as próximas gerações.

Não havia realmente vontade de colocar o texto em prática. Desde que o decreto foi lançado, em julho do ano passado, seu governo não tomou uma providência – como políticas que estimulem a produção responsável, a capacitação dos produtores rurais e investimentos em fiscalização – para garantir que a lei seria respeitada.

A prorrogação e a anistia não apenas atestam a irresponsabilidade do governo como livra a sua candidata à Presidência de fazer valer a lei. Historicamente, o desmatamento aumenta em anos de eleição, quando órgãos do governo atrelados à busca por votos evitam multar. Se o decreto entrasse em vigor, haveria chiadeira dos floresticidas, já de olho em 2010. Sem o decreto, as florestas ficam mais vulneráveis, tombando ao sabor de governos incapazes de controlar as motosserras.

A medida de Lula tornada pública hoje renova a esperança do setor mais atrasado da bancada ruralista de ter seus pecados eternamente perdoados – e portanto passíveis de repetição. Adiar soluções para os problemas do passado, sem apontar qual seria a proposta do governo para o Código Florestal, apenas garante que eles tenham tudo para continuar a se reproduzir no futuro.

*Rodolpho Mafei é Ecólogo e Analista Ambiental pelo ICMBio
Ministério do Meio Ambiente
RESEX de Canavieiras/ BA*

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...